CAOS

Entrou no elevador saturado de gente e apertou o nono andar. Caminhou até a sala de reuniões, olhou as pessoas sentadas em torno à mesa, e ocupou o lugar com seu nome. Acabara de chegar à cidade, e ainda não compreendia a angustia acelerada em que todos pareciam viver. Na sala, todo mundo falava ao mesmo tempo, atropelando-se. Na rua, as crianças berravam. Os gritos emaranhavam-se com o desespero das mães, e as vozes dos vendedores ambulantes. O barulho crescia e se espalhava. Os carros buzinavam. Os motoqueiros xingavam. Os helicópteros azucrinavam. A vida rolava solta e barulhenta... como de costume. Mas nesse dia ela estava particularmente feliz e não se importava. Finalmente, tinha aprendido a desligar o aparelho auditivo.

I Yolanda Serrano Meana I


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O JANTAR


Jantavam sempre em silencio. Às vezes ela sorria com esse sorriso carinhoso que ainda hoje enchia de saudades o coração dele. Às vezes era ele quem a contemplava com aquele olhar voraz que nunca ninguém conseguiu imitar, e ela tremia. O silencio só era rompido, momentaneamente, quando o garçom abria a garrafa de champanhe, e a colocava num balde de cristal com gelo. O buquê de rosas vermelhas, que dava um toque de cor à alvura da mesa de jantar, foi ideia dela. O anel de rubis, um detalhe dele. Ela percebeu como ele ficava elegante naquele smoking, e sorriu. Ele achou-a linda e sensual naquele decotado vestido de seda, e observo-a com olhar guloso. Faziam mais de vinte anos que estavam separados. Foi num treze de setembro, depois de um jantar. Desde então, celebram essa data juntos e em silencio. A cada ano aprimoram mais os detalhes da comemoração, do vestuário, dos pressentes. E a verdade seja dita, o resto do ano eles vivem, única e exclusivamente, em função desse momento. 


IYolanda Serrano Meana I


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ALMAS GÊMEAS

Caminhava devagar, absorta. Ia contando os passos. Procurava por o pé no centro dos paralelepípedos. Tinha que dar tantos passos quantos paralelepípedos houvesse na calçada. Não pisava as raias. Não tinha pressa. Ninguém a esperava em lugar nenhum. Foi então que ela o viu. Caminhava devagar, sem pressa. Os olhos fixos no chão, concentrados nos paralelepípedos. Parecia contá-los. Estava quase segura de que os contava. Por um segundo cruzaram um olhar. Ele perdeu a conta. Ela pisou na raia. Porra, sussurrou ele. Merda mussitou ela. Odiaram-se.
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REMANSO

Ruídos sempre lhe atazanaram os sentidos. Sempre houve zunimento na sua cabeça, que muitos insistiam em panfletar, era oca. Oco mesmo era o sentido disso tudo. Quem foi que lhe presenteou – em absoluto gesto de crueldade - com tais ruídos? Ele queria dormir, jogar-se ao mundo dos prazeres leves, de barulhos mais aprazíveis: canção cantada à capela, em quase murmúrio, risinho miúdo de criança em pleno exercício da traquinagem, sua pele roçando pele outra. Não houve médico que desse jeito nele. De menino doente, passou ao adulto doente de enfermidade que ninguém conhecia, nem os cientistas, tampouco as benzedeiras. As pessoas falavam com ele, mais por curiosidade do que por interesse em sua pessoa. Delicadamente, ele explicava que não conseguia entendê-los, porque os ruídos não lhe permitiam prestar atenção a ninguém. Não tardou para conhecer a mais absoluta e barulhenta solidão. Um dia, mergulhou no rio, e foi tão fundo, que os ruídos silenciaram. Não quis mais de lá sair. Silenciou-se.

| Carla Dias |


Imagem: The Key © Jackson Pollock

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AMOR SEGURO


Ela estava apaixonada pelo pediatra do filho. Sozinha, numa região rural – quem poderia criticá-la? Naquele amor havia um componente de grande paixão. Era também uma coisa segura. O homem estava do outro lado de uma barreira. Entre ela e ele: a criança sobre a mesa de exame, o próprio consultório, a equipe, a esposa dele, o marido dela, o estetoscópio dele, a barba dele, os seios dela, os óculos dele, os óculos dela...

| Lydia Davis em "Contos Escolhidos" |


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DESCOMPASSO III

Chovia. Ela também. As lágrimas ofuscavam sua visão. Passava os dias na janela da alcova. O olhar prendido na dança triste das folhas outonais, e nos caminhos sem pisadas do parque. O mesmo parque que ele deixara de frequentar. Não morava ninguém. Um prédio velho e vazio, que no dia seguinte iriam demolir. Mas, seus olhos não mentiam. Ela estava naquela janela, e nos seus sonhos. Ouviria seu coração e iria uma última vez. A chuva batia forte. O vento golpeava as árvores. O nevoeiro tinha engolido a cidade. Correu para não ser engolido e entrou no parque. Ela ouviu o crepitar das folhas. Ele vislumbrou a sombra na janela. Ela arrancou a crinolina e voou escada abaixo. Ele cruzou a rua. Não viu os faróis do carro, nem ouviu os gritos das pessoas no ponto do ónibus. Viu, sim, que ela saia do portal e caminhava até ele. Abriu os braços. Sabia que nunca desistiria de mim, disse ela, antes de fundir-se num abraço. Atrás ficou um jovem tendido na calçada e um velho prédio a ponto de derruir.


| Yolanda Serrano Meana |


Leia também Descompasso II

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PASSARINHADO

Era considerado o pior filho para sua mãe. Teve os piores rendimentos na escola. Não conseguiu nenhum emprego desses taxados como “de sucesso” pela sociedade. Nenhuma mulher, que se envolvia com ele, passou perto de pensar em tê-lo como marido. E nada de muito interessante lhe ocorria na vida. Isso tudo porque todos o achavam surdo. Mas o que ninguém sabia – e nem tentavam compreender – era que aquele homem nascera com uma cantoria constante de pássaros nos ouvidos. Desde o nascimento, chorou porque ouviu os passarinhados. Cresceu com os passarinhados. Vivia com os passarinhados. E quando ele tentava entender porque ele era tão destratado por todos, ele só conseguia pensar que os passarinhos que cantavam nos ouvidos das outras pessoas deviam ser péssimos cantores para lhes provocar tamanha falta de carinho pelo próximo. Só os seus passarinhos, por ele, tinham carinho.
| Evilanne Brandão |

Imagem: Flight of the mind - Christian Schloe

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COADJUVANTE

Nasceu coadjuvante, faz a vez de figurante, quase sempre. É responsável por entregar a deixa, que foi eleito, na miúda, aquele que o faz com a maior sutileza. Passa despercebido, mesmo quando entregador de deixa de virada importante da trama. É assim que funciona a sua vida de coadjuvante. Passa pelas pessoas, enquanto a vida reage a ele como se fosse dispensável escrever um grande enredo em sua homenagem. Coadjuvante do cachê mísero, do silêncio pungente, da presença necessária. Colaborador do destino alheio, que sempre influencia e colabora com a existência do outro, mas sem se fazer perceber o suficiente para ser considerado importante. Aliás, nem se atreva a pensar que ele não merece tal consideração. O destino, certamente, há de lamentar não ter prestado atenção a ele como deveria. Também não o julgue, porque ele não é pessoa que faz nada e espera tudo como recompensa. Ele ser coadjuvante, até na própria história, tem garantido a muitos serem atores principais em suas biografias.
| Carla Dias | 

Imagem: O Ator © Pablo Picasso
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DESCOMPASSO II

Mal amanhecia, abria os olhos e pulava da cama. Em silencio desatava o gorro de dormir, dava uma esticadinha com a mão na renda da camisola, espreguiçava-se na frente do espelho, caminhava lentamente até o balcão e ficava lá, o nariz grudado no vidro, o olhar fixo no horizonte esverdeado do parque. Ele surgia da bruma. Dessa neblina que nos últimos tempos se apoderara das paisagens, e de seu olhar. Protegida pelo acortinado observava os passos apressados desse jovem que não usava chapéu nem sobrecasaca, e admirava extasiada sua roupa simples e esquisita. Descarado, ele também a olhava. Parava na calçada para observa-la. Ela sentia-se feliz dentro daquele olhar atrevido, misterioso e sensual. Ela sonhava com aquele jovem estranho e perturbador. Ela o amava. Viu seu aceno ao atravessar a rua, e soube que ia busca-la. Esquecendo-se das normas, desceu os degraus de dois em dois e correu ao encontro. Do outro lado do portão, só a bruma e o vento.

I Yolanda Serrano Meana I


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